O Que Significa ‘Saúde dos Rios’? Explorando os Rios Cariocas e Sua Ligação com a Saúde Humana [REFERÊNCIA]

"Uma sociedade saudável depende de um rio saudável."

Rio das Pedras. Foto: Douglas Teixeira/Agência Lume

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Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros

Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.

O termo “saúde dos rios” é usado por comunidades, pesquisadores e jornalistas para falar sobre a qualidade da água em todo o mundo. Mas a saúde dos rios vai além de avaliações técnicas sobre níveis de poluição. Cada vez mais, a saúde dos rios é pensada de forma sistêmica: como um rio corre, quais espécies—e pessoas—vivem nele e ao seu redor, e o quão bem ele consegue se recuperar de danos. Assim como acontece com a saúde humana, os rios podem apresentar sinais de estresse, ter dificuldade para se recuperar de traumas e até mesmo precisar de tratamento.

Um grupo de pesquisadores do Reino Unido vem explorando a ideia de “riverkin” (em tradução livre, “rio-parente”, num convite a pensarmos neles como seres vivos e relacionais), demonstrando que rios saudáveis não são apenas vitais para garantir ecossistemas diversos e equilibrados, mas também essenciais para a saúde das comunidades humanas. Estes pesquisadores argumentam que a objetificação dos rios tem sido prejudicial à saúde humana e que devemos nos reconectar com eles em um laço de parentesco, como comunidades indígenas sempre fizeram. Hoje, alguns lugares do mundo reconhecem os corpos d’água como detentores de direitos, como no caso da Lagoa do Mar Menor, na Espanha.

“Eu gostaria de ver uma mudança no conceito científico do que é a saúde de um rio, para um que atenda a todos os critérios da biodiversidade… e também inclua a possibilidade de sustentar uma relação próspera com as pessoas à sua volta e com aquelas que interagem com ele.” — Dra. Julia Martin-Ortega

Com essa compreensão mais ampla, e para explorar como anda a saúde dos rios na cidade do Rio de Janeiro, o RioOnWatch acompanhou um tour de uma semana por rios em favelas da capital, organizado pela Rede Favela Sustentável em junho de 2025. Também entrevistamos dois geógrafos que estudam os cursos d’água urbanos da cidade e sua relação com as favelas. A condição dos cursos d’água na cidade é desoladora: no Rio—onde afluentes naturais são pavimentados e canalizados por toda a cidade—a saúde dos rios está diretamente relacionada à saúde de suas comunidades.

Os Desafios da Saúde dos Rios Cariocas

De acordo com o Instituto Trata Brasil, quase metade da população do país, 100 milhões de pessoas, não tem acesso à coleta ou tratamento de esgoto no Brasil.

Adão Castro é geógrafo e cria da favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio. Fez sua dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre o rio que dá nome à sua comunidade, e sua tese de doutorado sobre o Rio Guandu, responsável por abastecer o Grande Rio com água potável.

“A gente vê aqui o que acontece no caso do Rio das Pedras. Existe uma coleta, mas que destina o esgoto diretamente para o rio. E por que a gente chegou nesse cenário? Porque a gente foi se distanciando. As sociedades foram cada vez mais se distanciando [dos seus rios].” — Adão Castro

Assim como Adão, a geógrafa Kessy Almeida integra o projeto Conexões Rios, dedicado à educação ambiental crítica, e atua na reconexão entre comunidades e seus rios locais por meio de atividades participativas em escolas públicas. Doutoranda em Gestão e Planejamento Ambiental pela UFRJ, ela explica que o conceito de saúde dos rios vem sendo gradualmente compreendido no Brasil.

“Esse conceito, ‘saúde dos rios’, já é bem definido. Alguns geógrafos e geomorfólogos já trabalham bastante com [ele]. Acho que no Brasil não é tão difundido, mas já têm muitos estudos nessa área.” — Kessy Almeida

Kessy Almeida e Adão Castro mostram o mapa do Rio das Pedras durante visita da Rede Favela Sustentável à comunidade de mesmo nome durante o tour investigativo “Rios de Favelas”. Foto: Douglas Teixeira/Agência Lume
Kessy Almeida e Adão Castro mostram o mapa do Rio das Pedras durante visita da Rede Favela Sustentável à comunidade de mesmo nome durante o tour investigativo “Rios de Favelas”. Foto: Douglas Teixeira/Agência Lume

Kessy também participa do grupo GEOMORPHOS, que realiza análises de bacias hidrográficas em diversas regiões do Brasil. Ela conta que sua experiência com os dois grupos, um focado em análise geoespacial e o outro em educação, a fez perceber que a questão da saúde dos rios requer uma abordagem científica e baseada em políticas educacionais.

“[A saúde dos rios] se refere à capacidade que um rio tem de desempenhar suas funções naturais. [E isso se trata] de todo o ecossistema adjacente ao rio, do entorno dele. [Inclui] ele sustentar a biodiversidade, os animais, a mata, e regular o fluxo dos sedimentos e fornecer a água, [além de] atividades culturais, recreativas, econômicas. A saúde de um rio está diretamente relacionada à saúde de um ecossistema… e, também, diretamente relacionada à saúde humana.” — Kessy Almeida

Hoje, grande parte do Rio de Janeiro se desconectou das funções naturais dos muitos rios que o cortam. A maioria das pessoas passou a enxergar os rios como canais de esgoto.

“Dentro das comunidades mais pobres, esses rios canalizados também são entendidos como valões, um termo muito usado aqui no Rio de Janeiro para entender onde é o despejo de lixo e esgoto… Quando a gente fala assim, ‘[aqui] não tem rio, [só] tem valão’, é porque a sociedade entende aquele rio como um lugar de despejo de esgoto e lixo.” — Kessy Almeida

A pesquisa de Adão descreve como os rios da cidade passaram a servir como vetores de doenças.

“Aqui, num cenário de chuva… se o rio subir um pouquinho, já chega nas casas. Consequentemente, vai inundar. E essa água traz muitos problemas. Muitas doenças: leptospirose, leishmaniose, hepatite. E o Rio das Pedras, dentro do contexto da cidade do Rio de Janeiro, é uma das favelas com o maior número de doenças de veiculação hídrica.” — Adão Castro

Na favela de Acari, um afluente do Rio Acari corre com esgoto ao lado das casas da comunidade. Foto: Bárbara Dias
Na favela de Acari, um afluente do Rio Acari corre com esgoto ao lado das casas da comunidade. Foto: Bárbara Dias

Segundo Kessy, mudar a perspectiva dos moradores é o primeiro passo para resolver o problema.

“Se a sociedade entende que o rio é um valão, é assim que ela vai se relacionar com ele. E como é possível pensar numa sociedade saudável se o rio está doente? Se ele não consegue mais cumprir suas funções naturais e ecológicas?… É uma via de mão dupla: um rio doente reflete uma sociedade doente, e uma sociedade saudável depende de um rio saudável.” — Kessy Almeida

O desafio não se restringe às favelas da cidade, embora sejam as áreas mais impactadas. Os rios doentes do Rio de Janeiro comprometem a saúde de todos.

“[Essa é a situação] em várias partes da cidade, inclusive em áreas urbanizadas. Numa urbanização mais antiga, em bairros de classe média, no próprio Rio Maracanã, por exemplo, a gente não vai encontrar lixo assim, mas vai encontrar um rio extremamente poluído.” — Adão Castro

O Rio Maracanã atravessa o tradicional bairro da Tijuca. Foto: RioOnWatch
O Rio Maracanã atravessa o tradicional bairro da Tijuca. Foto: RioOnWatch

Revertendo o Curso: Como Reconstruir Nossa Ligação com os Rios da Cidade

Qual é a solução? Tanto Adão quanto Kessy destacam a afinidade das comunidades indígenas brasileiras com os cursos de água, bem como a necessidade de aprendermos com elas para promover diálogos sobre a saúde dos rios cariocas.

“Os indígenas no Brasil não conseguem se ver separados do rio. O rio é como se fosse um pai, uma mãe, um braço.” — Adão Castro

O valão na maior favela do Rio, a Rocinha, é coberto por grades—o que não disfarça o cheiro de esgoto. Foto: RioOnWatch
O valão na maior favela do Rio, a Rocinha, é coberto por grades—o que não disfarça o cheiro de esgoto. Foto: RioOnWatch

Infelizmente, a mercantilização dos rios ocorreu durante e desde a colonização portuguesa do país.

“Os povos originários aqui no Brasil tinham uma relação intrínseca e indissociável com o rio. Com a colonização, a gente tem o período de apropriação. O colonizador, o português e outras nacionalidades, olhou para o rio e disse: posso utilizar esse rio para produção de cana-de-açúcar, para irrigar a produção, para operar o moinho do engenho… Então, a gente foi construindo uma visão utilitarista: o rio apenas enquanto recurso. O rio que serve para navegação, para utilização da água, para abastecimento humano e industrial, para você diluir também o esgoto. É muito contraditório. A água dá a vida e, no entanto, a gente descarta tudo o que tem de ruim na água.” — Adão Castro

Kessy destaca os desafios que o atual sistema econômico mundial impõe à manutenção das relações humano-ecológicas.

“A nossa sociedade capitalista acaba afastando muito o ser humano da natureza, transformando a natureza numa coleção de objetos [ou de recursos]… Mas algumas comunidades tradicionais entendem a natureza de uma outra perspectiva… É uma relação mútua: a natureza é onde você busca o seu alimento, onde você brinca, onde você reza.” — Kessy Almeida

No Equador e na Nova Zelândia, os rios receberam personalidade jurídica—uma designação que fortalece a relação entre humanos e rios.

“Se a gente parar para olhar o que está sendo feito fora do Brasil… alguns países, como o Equador, já estão pensando um pouco mais… nos direitos da natureza. Entendendo, por exemplo, o rio enquanto [personalidade jurídica] para garantir que ele seja um sistema saudável… A Nova Zelândia também foi pioneira. Junto com o povo Maori, concedeu personalidade jurídica ao Rio Whanganui. Isso reconhece o rio como um ente vivo e de direitos… São exemplos que a gente pode aprender, incorporar e explorar.” — Kessy Almeida

Segundo Kessy e Adão, há medidas claras que pesquisadores, formuladores de políticas públicas e moradores podem tomar no Rio de Janeiro para proteger seus rios.

“Quando eu penso para onde a gente vai, acho que existem dois caminhos. Um que não é tão positivo, que é esse caminho da negligência, da intensa degradação… dos nossos rios e dos nossos elementos naturais. Mas, como pesquisadora e geógrafa, eu acredito que existe um outro rumo: a educação pode nos ajudar a trilhar um caminho melhor, diferente.” — Kessy Almeida

Grande parte do trabalho educativo realizado atualmente sobre os rios da cidade é liderado por grupos comunitários, organizações não governamentais, grupos universitários e de pesquisa, além de alguns órgãos públicos.

De acordo com Kessy, o trabalho educativo realizado por esses grupos, embora não seja uma solução científica “típica” para o problema, é a ferramenta mais poderosa para começarmos a refletir sobre a saúde dos rios.

“Se a educação estiver alinhada com estudos científicos, dialogando com a gestão pública e respeitando as comunidades e os saberes tradicionais, eu acredito que a gente consiga restabelecer a conexão entre a sociedade e os nossos rios.” — Kessy Almeida

Kessy descreve a educação como um caminho para a formulação de políticas, que podem consagrar os direitos dos rios, e das comunidades que deles dependem, em lei.

“Isso começa pelo básico: garantir direitos básicos [à moradia], a um ambiente saudável para se viver. Pensar também políticas públicas [que atendam às reais necessidades da população]… [aproximar os] saberes produzidos na universidade das comunidades locais.” — Kessy Almeida

Por fim, ela enfatiza que as necessidades não podem ser atendidas sem sabermos quais elas são, o que requer outro componente: a escuta.

“O primeiro passo é ouvir: ouvir o que o rio tem a dizer, ouvir o que a comunidade tem a dizer e pensar [as necessidades] de cada um… Que não seja de cima para baixo… Que de fato, [possamos ter] um cenário mais justo [do ponto de vista] ambiental e social.” — Kessy Almeida


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